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quinta-feira, 25 de julho de 2013

Estrutura solitária

Viver sozinho não é algo tão simples quanto eu esperava. Durante anos sobrevivi sem amparo físico ou psicológico algum. Eu vivia razoavelmente bem, sem grandes problemas ou preocupações, bem como solucionei problemas que não eram meus, pois não precisava solucionar nada dentro de mim. Os dias passavam normalmente, enquanto eu permanecia forte e imune aos sentimentos destrutivos existentes na minha espécie. Contudo eu não percebi que, no meio desse plano de vida, eu acabei por me diferenciar e me transformei em algo não humano, não natural.
Tornei minha vida sintética, simplifiquei minhas emoções, projetei máscaras e falsos objetivos necessários à manutenção de vida.  Aos poucos, meus espinhos foram aparecendo na mesma proporção em que minha paciência e compaixão se esvaiam. Não me tornei selvagem, mas também não era mais capaz de agir e pensar de maneira racional. Minha voz foi sumindo e meus ouvidos cresceram, enquanto meus olhos focaram-se em outras características. As pessoas à minha volta começaram a existir parcialmente em minha memória, essa última somente acionada quando precisava alimentar-me de humanidade, nutriente básico para a manutenção do meu estilo de vida. Sonhos foram sublimados, lembranças ruins deixaram de ser esquecidas, assim como as boas eram tão remoídas que se tornavam praticamente físicas, direcionando minhas ações e pensamentos. Embora meus movimentos não tenham se tornado mecânicos, minha mente era mecanizada pouco a pouco, à medida que meus sonhos e desejos deixavam de existir. Por fora, era inabalável ao ponto de ninguém conseguir ameaçar meu núcleo debilitado, não só por não possuírem força suficiente, mas também porque não conseguiam enxergar qualquer falha na armadura espinhenta que me cercava. Toda dor externa disponível era absorvida pelo meu corpo e neutralizada em seguida, pois meu interior necessitava de treinamento para tornar-se ligeiramente forte e curar qualquer ferida que pudesse trespassar a carapaça numa situação real. Até então, tudo estava perfeitamente equilibrado. Os ganhos e custos eram balanceados.
Porém, havia uma leve brecha em toda essa estrutura interna. Meu caráter era necessário para a manutenção desse modo de vida, todavia ele era, do mesmo modo, o responsável por causar certo dano ao ativar as lembranças mais amorosas e ao produzir sentimentos e relações de amizade com certas pessoas. Esse caráter, que implorava para que o emocional ganhasse mais espaço e perdoava qualquer magoa proveniente de algumas pessoas, gerou um espaço no qual meu corpo não tinha quaisquer formas de controle. Uma pequena bomba se instalou ali e foi programada para detonar a qualquer instante.
Foi então que aconteceu.
Minha carapaça de espinhos começou a machucar as pessoas que meu caráter lutava a favor. Com isso, o estímulo necessário à detonação da bomba foi cedido e a explosão interna gerou o caos, alimentado pela dúvida: Curar-se ou reparar os danos causados nas outras pessoas? Então a dor foi criada e fluiu por todo o meu corpo, desestruturando todo o sistema ao gerar danos de dentro para fora...
O resultado disso tudo apareceu na forma de corrosão devido aos sentimentos de culpa e desapontamento que surgiram dali. E então, no meio do desastre, eu aprendi.
Pessoas são as verdadeiras fontes, capazes de gerar espontaneamente e em grande quantidade a humanidade que eu lutava para produzir sinteticamente. Eliminando-as eu institui um inverno permanente dentro de minha mente e então, confortavelmente, entrei em estado de hibernação diante do clima frio e hostil de meu próprio pensamento... Desta forma, meu corpo se adaptou em toda a estrutura que criei e assim eu vivi por um bom tempo. Mas os recursos começaram a escassear e a armação se desfez. Assim, morri por inanição. Nos últimos instantes eu pude entender o que estava acontecendo, mas os danos foram irreparáveis.
Consequentemente, a tristeza me raptou para o mundo dos mortos, deixando apenas marcas de sangue e miolos nas paredes de meu quarto ao projetar-se contra mim na forma de um projétil de revólver, sustentado pela minha própria mão.

Lucas de Figueiredo


2 comentários:

  1. Olá :)
    Achei interessante a escolha de palavras fortes, que tornaram o conto intenso do início ao fim. Muito bom :)

    Abraços
    www.my--bookshelf.blogspot.com

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    1. Olá Stéfane,

      que bom que você gostou, o autor ficará muito feliz em saber do seu elogio!! ^^
      Beijos!!

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