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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Lobisomem Envenenado

Luigge tomou um gole do seu vinho seco e ajeitou a camisa no corpo antes de levantar.
Deu uma olhada como estava vestido, não que isso fizesse diferença. Como lobisomem ele podia usar de seus truques de Lobo da sedução, mas gostava de fazer as coisas à moda antiga. Ele vinha da terra do amor e se sentia na obrigação de ser um cavalheiro, às vezes.
Ela estava olhando para ele a noite toda e isso começava a instigar a sua vontade de brincar um pouco. Lobos maus correndo atrás de humanas em uma noite comum em um lugar qualquer, cantarolou baixinho para si mesmo. A moça era bonita e não aparentava mais de vinte e cinco anos. Loira natural, unhas vermelhas, longas como garras e um corpo estrangulado dentro de um vestido que marcava tanto suas curvas que se tornava parte de sua pele. Azul, sua cor favorita.
Um arrepio familiar correu pelo corpo de Luigge. O instinto de lobo está gritando para ele seguir o mais depressa para jogos mais profundos dentro da bela loira, mas existe alguma coisa irritante dentro desse desejo, como um alerta por cima. Uma armadilha? Seria ela mais alguma aberração noturna como ele?
Quando chegou perto o suficiente da moça, sentiu uma estranha sensação que o deixou meio tonto. O perfume dela. O cheiro que vinha da pele dela e não podia ser uma combinação de cremes ou essências. Era dela. Uma onda intensa de atração atacou seu cérebro e o lobo dentro de si começou a cravar suas garras dentro de sua alma. Sentiu suas unhas começando a formigar e se afiar como garras, mas se concentrou para dominar o que sentia.
Finalmente ambos ficaram perto o suficiente para conversar. Perto até demais.
-Eu pensei que nunca iria falar comigo - Disse uma voz meio infantil, mas que parecia uma canção. - Me diga seu nome... Não seja indelicado - Sorriu.
-Luigge - Luigge quase engasgou ao responder. Uma pontada do seu sotaque italiano passado escapou de forma natural nas vogais.
Seus olhos azuis estavam como presos dentro dos olhos cor de céu da sua vítima. O azul dos olhos dela eram os mais profundos que tinha visto em uma pessoa. Intensos. Era como ter um oceano dentro daqueles olhos com uma correnteza capaz de puxar para alto mar.
-Italiano? Deixe-me adivinhar... Está aqui para o carnaval - A voz dela soou de forma casual, mas Luigge sentiu uma ponta de malícia que não soube explicar.
-Eu moro aqui há algum tempo - Luigge respondeu. Sua voz soava estranha para ele mesmo. De repente a intensidade de caçador tinha sumido e ela parecia estar jogando com ele agora.
-Antes que você pergunte, meu nome é Sirena e sou uma estrangeira também - Ela sorriu e uma fileira de dentes brancos apareceu. Tão perfeitos que doía só de olhar para eles.
Luigge sentiu um mal estar rápido como se fosse atingido por algo na cabeça e fosse desmaiar, mas se recuperou rápido daquela sensação. O lobo dentro de sua alma recuou e ficou no canto mais afastado como um cãozinho acuado. O que estava acontecendo?
-Você costuma sempre encarar mulheres dessa forma estranha ou está tentando me hipnotizar com seus belos olhos azuis? O que você é Luigge? - A voz de Sirena pareceu entrar no seu cérebro e vasculhar o que podia como um relâmpago.
Os olhos dela ganharam um brilho de luar e Luigge podia jurar que via as ondas do mar se movendo dentro da íris celeste de Sirena. Por mais que ele quisesse desviar o olhar, seus olhos pareciam fixos nos dela como uma cobra pega pelo som da flauta do encantador.
-Lo...
Luigge levou as mãos à boca o mais depressa que pode. Era uma criança que quase havia dito um palavrão perto da mãe e percebia a tempo isso.
Merda! Pensou Luigge. Ele quase havia contado a uma estranha o que era e podia jurar que era justamente isso que ela queria saber pela forma como um sorriso diabólico se desenhou em sua mente.
-Lo... Louco - Sirena riu. - Estou conversando com um italiano demente dentro de um barzinho. Realmente a vida é uma surpresa - Sirena não escondeu a ironia dentro do ar de brincadeira.
Luigge sentiu de novo aquela sensação de receber uma pancada na cabeça e cambaleou um pouco para a esquerda. Seus olhos se fecharam e por um segundo ele não olhava para os olhos de Sirena e podia sentir sua natureza de lobo se mexer dentro dele emitindo um alerta de retirada. Aquela mulher não era humana. Era alguma coisa perigosa que estava brincando com ele.
-Boa noite! Tenho que ir – Luigge disse. – Correu os olhos para qualquer direção que sabia que não encontraria os olhos de Sirena.
-Não seja indelicado mocinho! Não pode me deixar sozinha enquanto estou me divertindo. Olhe para mim agora – Sirena cantou suas últimas palavras como uma melodia doce.
A voz dela penetrou dentro de cada fibra de Luigge e ele sentiu sua energia sumindo de novo. Se virou para ela e deixou aquele malditos olhos oceânicos o prender em alguma espécie de jaula invisível.
-Eu nunca provei um Lobisomem antes.
Luigge não teve tempo de reagir ao que tinha ouvido. Sirena se atirou em cima dele e cravou seus lábios de traços suaves e macios nos dele com violência. Ele sentiu a língua quente dela, mas aquilo não era só um beijo. Ele sentia perfeitamente um gosto amargo em sua boca. Aquilo que saia da boca de Sirena não era saliva humana, era algum tipo de veneno que estava injetando nele como uma serpente.
O mundo começou a rodar devagar e Luigge sentiu que ia cair no chão quando mãos poderosas se prenderam ao redor de seu pescoço e ao redor da sua cintura. Tudo se tornando distante e por fim escuro.

A fuga da Sirena

Sirena segurava o corpo de sua presa como se fosse uma marionete. Ela sabia que parte dele estava consciente e sobre o seu controle, mas era incapaz de fazer qualquer coisa sem que ela permitisse. Ela tinha meia hora até o veneno começar a perder o efeito.
Homens humanos eram mais fracos ao seu beijo venenoso, mas outros seres da noite como ela possuem algum tipo de agente que impedia que ficassem muito tempo intoxicados.
-Lobisomem – Sussurrou baixinho para si mesma – Nunca provei um lobisomem antes. Dizem que alguns chineses gostam de comer cachorro. Você vai ser o meu cachorro Luigge. Meu cachorro quente italiano.
Sirena arrastou o corpo de Luigge até a saída do bar e usando do seu poder de controle fez com que todos os humanos presentes ignorassem sua presença e o que acontecia a sua volta. Ela poderia devorar ali mesmo se quisesse, mas ela gostava de coisas bem feitas.
Sirena alugou um quarto de hotel perto de onde era o bar. Ela não gostava de caçar muito longe de seu ''covil'', pois os anos há deixaram preguiçosa. Ela fazia isso desde a Grécia Antiga e estava começando a ficar sem ideias para joguinhos de sedução.

Alucinação

Luigge mergulhou num mar de tranquilidade. Ele não tinha a menor ideia de onde estava, mas a sensação era muito gostosa. Abriu os olhos devagar e viu que se encontrava em mar aberto numa noite de lua cheia. Estava nu, mas isso não o incomodava. A água o cobria como uma roupa aconchegante após um banho quente. O cheiro salino do mar entrava pelo seu nariz e trazia arrepios gostosos pelo corpo todo. Olhava para o céu limpo e estrelado e sentia parte daquele momento único.
Nada importava, nada. Ele sabia que aquilo não estava certo. Toda aquela perfeição não podia ser natural, mas sua mente e seu corpo não ligavam para a ilusão. Tão aconchegante. Perfeita.
Ele esticou o corpo e tentou nadar um pouco, mas percebeu que seu corpo não se movia sobre a água. Ele estava boiando sobre ela de costas. Uma sensação desesperadora começou a oprimir a sua garganta e antes que ele pudesse pensar veio uma dor aguda. Uma dor monstruosa que quebrou todo o encanto daquele momento perfeito.
Seu ombro parecia estar sendo perfurado por pequenas agulhas afiadas e o impulso de dor corria em impulsos elétricos. Por instinto queria atacar qualquer coisa que causasse a dor, mas não tinha forças para isso. Queria se debater ou pelo menos gritar.
Abriu os olhos para o infinito céu acima de si e procurou a lua, mas ela não estava lá. Ele só via as estrelas. Então fechou os olhos com toda a força e gritou com o animal dentro de si. Procurou o espírito do lobisomem no mais fundo da sua alma e pediu sua ajuda. Pediu a ajuda dele e num lampejo ele respondeu. Luigge sentiu a força do lobo sobrepujando a dor e todas as sensações sumiram.

Despertado

-Desgraçado!
Luigge ouviu aquele grito de dor e raiva um pouco antes de abrir os olhos.
Sabia que seu ombro sangrava porque o cheiro do seu sangue ajudou que recobrasse parte da realidade a sua volta. O mundo era meio embaçado e lento. Era como se todas as luzes e cores fossem fortes demais para ele.
-Lobisomem maldito. Vou devorar você causando muita dor. Veja o que fez!
Antes que Luigge pudesse pensar, o Lobo dentro de si reagiu a uma ameaça e num salto rápido ele pulou para longe da sombra que investia em sua direção. Luigge então percebeu que se encontrava num quarto grande de algum hotel. Ele estava deitado numa grande cama de lençóis brancos que agora estavam manchados com seu sangue. Tocou seu ombro e sentiu os exatos pontos em que a pele tinha sido perfurada por alguma coisa afiada.
-Você não vai escapar!
Luigge apenas reagiu por instinto ao se desviar novamente da ameaça que ainda era um borrão. Seus olhos estavam começando a se focar, mas seu olfato de lobo sentia o cheiro de mar. Água salgada, maresia e alguma outra coisa perigosa.
Luigge sentiu o formigar em suas mãos e sentiu quando suas unhas viraram garras e seus dentes se tornaram pontudos como presas. O lobo uivou para seu predador e então o atacou com golpes de suas garras. Luigge sentiu o espírito do lobo arder dentro dele como uma chama querendo dominar sua mente por completo.
-Ahhhhhhhhhhhhhh – Gritou uma voz grossa e irregular.
Os olhos do lobo ascenderam num lampejo e sua visão voltou a ser mais clara que antes e o seu predador ficou focado. Luigge não via mais através dos seus olhos e sim através dos olhos do lobo que era parte de sua alma.
Sirena estava caída no chão do quarto do outro lado. Seu vestido estava rasgado e manchado de sangue, mas algo estava errado. Ela não era nem de perto a moça sensual que era no barzinho. Sua pele era feita de escamas verdes e seu cabelo era como algas marinhas gosmentas. Da sua boca descomunal e anormal de tão grande, pendiam dentes pequenos e afiados como pequenas serras e sua língua era anfíbia.
-Vou acabar com você, lobisomem! Veja o que fez com meu lindo rosto. – Sirena tocou o lado esquerdo do seu rosto que havia sofrido cinco profundos cortes que o tornaram mais medonho do que era agora. – Eu sou um espírito antigo das águas e você não pode comigo.
Um tremor correu o corpo do lobisomem e Luigge sentiu que ele e o Lobo sabiam que aquela coisa que vinha do outro lado do quarto era uma ameaça. Luigge permitiu que o espírito do lobisomem tomasse seu corpo.
Seus olhos azuis se tornaram celestes e sua íris se dilataram como se fosse uma lua cheia num céu azulado. Seus dentes se alongaram e se afiaram como armas. Seus dedos se alongaram e suas presas ficaram maiores e mais perigosas. Todos os sentidos foram elevados e agora ele podia ver de fato o que era Sirena.
O cheiro de Sirena agora denunciava todo o mal que antes ela conseguia encobrir. O lobisomem podia sentir o cheiro ocre do veneno dentro daquela boca horrenda e que o tinha derrubado antes.
-O que é você? – A voz do lobisomem soou quase como algo gutural. Quando o espírito do lobo tomava o corpo de Luigge e se tornavam aquela união antiga de homem e fera ele geralmente não falava, mas ele queria conhecer seu oponente. O espírito de Lobo não tinha tomado sua consciência lógica.
-Eu sou uma das mais antigas entidades da água. Eu seduzi todas as espécies de homens, deuses e criaturas para me alimentar da sua alma e da sua carne. Eu vivo na terra, mas meu reino é nas águas e do meu canto ninguém escapa. – Ao falar o monstro aquático voltou a usar o tom de voz que Luigge ouvira Sirena usar no bar.
-Mas não é tão forte quanto diz que é. Não conseguiu me prender no seu encanto o suficiente pra me devorar. –O lobisomem desafiou Sirena com o olhar. Os olhos dele não eram mais atraídos pelos olhos do monstro.
-Isso é o que você pensa...
Sirena começou a entoar algum tipo de som que parecia uma melodia antiga. Aquele som não parecia sair da mesma voz horrenda do monstro que ela se mostrava. Era um som doce e acolhedor.
O lobo sentiu uma pequena fraqueza, mas lutou para conter sua sensação. Na sua forma humana a canção de Sirena era mais poderosa, mas como lobisomem não tinha tanto poder para o paralisar.
O lobisomem saltou para cima de Sirena e com uma das suas mãos a pegou do chão onde estava caída e a levantou.
-Você não pode resistir a mim! Não pode - Berrou a voz disforme do monstro.
Em um movimento rápido a Sirena gravou suas garras no ombro do lobisomem. Ele apertou mais forte o seu pescoço. Os dois estavam dentro de um embate de forças. O sangue escorria pelos ombros do lobisomem que ardia, mas ele se recusava a largar o pescoço de Sirena.
Com uma das garras livres o lobisomem a afundou no abdome de Sirena e sentiu seus órgãos gelatinosos e quentes como uma água viva queimar sua mão e a dor o fez urrar com toda força.
-Não pode me matar sua criatura inferior! Eu sempre volto. Eu sou o espírito amaldiçoado das águas – Berrou Sirena.
Num último golpe de desespero Sirena usou seu canto contra o lobisomem.
Ele por alguns segundos se enfraqueceu e ela com um chute conseguiu o derrubar no chão. Com a velocidade de uma serpente a Sirena correu para fundo do quarto onde havia uma banheira cheia de água. Em um movimento rápido ela se jogou dentro dela.
Sirena havia enchido a banheira um pouco antes de começar a devorar o lobisomem e isso foi seu erro. Pouco tempo foi suficiente para que o corpo dele superasse seu veneno.
Dentro da água fria o corpo da Sirena sofreu uma transformação completa e ela se tornou do torço para baixo uma espécie de cobra marinha com uma cauda longa e escamosa com uma espécie de ferrão de raia na ponta.
Sirenas eram espíritos amaldiçoados que só serviam para causar o mau nas águas diferente das sereias. Muitos humanos culpavam as sereias de matar marinheiros afogados e derrubar barcos, mas na verdade isso tudo era obra das Sirenas. As sereias protegiam os humanos e as águas e não eram devoradoras de homens, mas como as sereias as Sirenas possuíam a beleza como humanas e um encanto mágico nos homens e seres sobrenaturais.
Sirena se ergueu como uma cobra dentro da banheira quase até sua cabeça bater no teto. Quando abria sua boca expelia uma saliva grossa e fétida.
O lobisomem ficou no chão em posição de defesa ao ver o quanto sua rival era forte. Não tinha como enfrentar ela com igualdade de forças justa. Precisava fugir.
Sirena soltou um grito que fez os vidros da janela do quarto se quebrarem e as paredes e o teto racharem.
-Você é meu lobisomem! – Gritou o monstro numa voz estridente.
Em reflexo de sobrevivência o lobo viu a janela e sem pensar correu até ela na esperança de tentar fugir sem pensar nas consequências.
Sirena pulou para fora da banheira e atacou com sua cauda com ferrão venenoso, mas o lobisomem foi mais rápido ao saltar da janela para a noite fria.
Pela segunda vez naquela noite ele mergulhou na escuridão, mas dessa vez a morte poderia ser uma realidade e não existia nada de aconchegante nela. Ele sentiu-se cair e torceu para que aquele não fosse o último andar do prédio de onze andares.
Ele sentiu seu corpo tocar o concreto rígido e os ossos do seu lado esquerdo e da sua perna gritarem antes de partirem.
Quando Luigge abriu os olhos sentiu que aquilo iria matá-lo. Todas as sensações de dor física vieram em uma dose só e bem concentrada. Ele gritou tão alto quanto pode.
-Luigge, que foi? – Disse uma voz feminina suave.
Agindo apenas pelo instinto Luigge uniu todas as suas forças e se jogou na direção daquela voz. Ele não iria ser devorado vivo pela Sirena. Não ia ser comida de nenhum espírito marinho.
-O que esta fazendo?! Ficou louco?!
Luigge sentiu braços poderosos o segurando enquanto tentava se defender e então alguma coisa em sua mente chamou sua atenção. Como ele podia estar lutando com Sirena depois de cair daquele prédio?
Luigge abriu seus olhos e ficou confuso por um minuto antes de olhar para baixo e ver o mais belo par de olhos verdes que já tinha visto.
-Pegou algum tipo de raiva licantrópica ou coisa parecida?! Para com isso que está me machucando.
Era Giovanna que reclamava com ele. Não era nenhuma criatura sobrenatural querendo fazer dele um banquete. Giovanna sua amada namorada humana e sem dúvida não mortal.
-Pesadelos?! – A voz de Giovanna denunciava que acabara de acordar.
-O que aconteceu? – Luigge saiu de cima de Giovanna na cama e deitou do lado dela. As mãos cobrindo o rosto.
-Eu que o digo! Primeiro a gente transa a noite toda e quando consigo uma pausa para dormir você me acorda querendo me matar. Algum tipo de fetiche novo que tenho que conhecer? Tipo o lobisomem mal e a humana de calcinha vermelha? – Giovanna riu
Luigge não conteve o riso. O senso de humor de Giovanna sempre tinha uma hora certa de agir. Ele se sentiu meio patético ao perceber que tinha ficado com medo de um pesadelo como uma garotinha assustada.
-Café? – Luigge falou, enquanto se preparava para levantar da cama.
-Por favor.

Leonardo Ragacini


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