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sábado, 13 de agosto de 2011

Extrato ao vento

Ao abrir os olhos hoje de manhã, olhei para o teto de meu quarto. Todo branco, o forro contrastava com as paredes escuras e dava um estilo enigmático para o cômodo. O alarme soou em seguida e eu, que relutava em levantar, coloquei meus pés descalços no chão gélido. Fui à cozinha, servi-me de uma boa caneca de chá gelado que preparei ontem e logo após fui ao banheiro com a intenção de tomar um bom banho e me arrumar para ir ao trabalho. A água caia sobre meu corpo me trazendo uma sensação que fez com que saísse um pouco do mundo e voltasse ao meu passado, porém logo acordei ao encostar-me na parede fria com minha pele quente devido à água estar bem aquecida.
Após o banho, fui à padaria onde comprei pães, biscoitos, duas rosquinhas e duzentos gramas de mortadela e depois retornei a minha casa para tomar o café. Depois de ter feito tudo isso, fui para o trabalho.
O serviço não terminava mais. Eram centenas de documentos para organizar e enviar para os mais diversos destinatários. Parecia-me que tinha tarefas acumuladas de uma semana e meia e tinha que entregá-las antes do anoitecer, contudo, para a minha felicidade, os afazeres foram diminuindo e uma pequena parcela faltava para ser concluída. Terminei logo e fui para casa, morto de cansaço.
Quando cheguei, dei uma ajeitada na casa, limpei o chão da sala e da cozinha, assisti à novela e ao futebol e depois fui para cama, mas o sono demorou a chegar. Então me sentei e fiquei absorto em meus pensamentos. Naquele momento somente a palavra felicidade me vinha à cabeça, juntamente com vagas lembranças de momentos em que me senti plenamente feliz. Felicidade plena na qual nunca acreditei que existisse, pois plenitude para mim é algo mais do que duradouro. Diria até quase eterno.
Essas lembranças fazem parte de minha infância e adolescência, partes estas pelas quais sinto muita saudade. São momentos nos quais percebo que se ausentam particularidades existentes na vida adulta, que percebo somente agora. Lembro-me quando sonhava em ser adulto para ter minha independência, construir grandes projetos, obter grandes conquistas e ser digno de grande admiração. Como era fantástica a minha imaginação! Pena que nunca se aproximou da realidade. Dinheiro para sobrevivência, classe social para prestígio, responsabilidades para a vida, eficiência para o trabalho, falsidade para a imagem. Nunca imaginei que iria possuir essas artimanhas que odeio tanto e hoje penso “Se foi para isto que cresci, então gostaria de permanecer como uma criança! Afinal só elas possuem a inocência, a doçura, a sinceridade, a alegria e a esperança que nos dias atuais eu valorizo tanto!”. Então percebo meu extrato bancário na escrivaninha e, com raiva, rasgo o papel e jogo-o no chão. “Não era essa a independência que eu queria! Não eram esses os projetos que gostaria de construir! Não eram essas as conquistas que sonhava e não me vejo digno de nenhuma admiração!”. Logo depois desabei na cama e lágrimas transparentes brotaram de meus olhos. Transparentes como uma criança, porém com o sofrimento de um adulto. Adormeci.
Abri os olhos. O travesseiro estava encharcado e sentia gosto de sal na boca. Olhei para o teto branco, porém levei um susto ao perceber as paredes claras que meu quarto adquiriu. A mobília estava totalmente diferente e as dimensões do aposento também diminuíram. Então gritei ao pensar que fui sequestrado e meus pais apareceram na porta, correndo para me abraçar. O carinho do abraço aconchegante me tranquilizou e, confuso e tentando me lembrar de como fui parar na casa de meus pais, me levantei rumo à porta, porém, antes de chegar ao meu destino, me surpreendi ao olhar-me no grande espelho que jazia do lado de minha cama. As rugas sumiram e o sofrimento dos anos também. De pijama pulei de alegria ao perceber que tudo aquilo pelo que passei não fazia mais parte de minha vida, mas sim de um sonho que, com êxito, me alertou sobre um de meus mais temíveis e terríveis (e possíveis) futuros. Volto para cama, abraço meus pais novamente e vou tomar meu café da manhã com um novo brilho no olhar.
E como prova diminuta e imperceptível daquilo que julgava ser sonho e na verdade escondia uma chance dada a poucos pelo destino, os restos de meu extrato bancário, com data marcada 26 anos após aquele dia, levantaram-se do chão com as forças do vento e desapareceram pelo mundo sem que ninguém os visse. E agora, depois que vivi toda a minha vida como planejei nos tempos de menino, parto para um destino ao qual não tenho nenhuma ideia de como será. Talvez uma nova vida, talvez a escuridão profunda, talvez o céu ou ainda o inferno. Repito que “não sei onde estou ou aonde vou agora”, mas digo, com toda franqueza do mundo, que parto satisfeito comigo mesmo.

Lucas de Figueiredo

2 comentários:

  1. Se todos pudessem ter essa chance...que bom seria!
    Lucas, esse seu texto conseguiu me deixar extremamente compenetrado na leitura. Escreva assim no nosso livro e eu já vejo as editoras correndo atrás da gente ^^

    Rafael

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  2. ... acho que não preciso falar muito né Rafa? xD daqui a pouco aparecerá editoras!! XD

    Beijos

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