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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A Velha

E a velha que sempre me acompanhou morreu. E no lugar veio outra. Aparência, código genético, pensamentos... tudo igual. Ou pelo menos era o que aparentava ser.
A religião sempre foi uma de nossas diferenças, mesmo antes da morte da antiga velha. A nova, porém, acentuava tudo o que provocava discórdia. Parecia que alguma coisa tinha dado errado no processo, pois a nova velha não conhecia nada além de destruição.
E foi nesse momento que resolvi olhar o que estava acontecendo de uma maneira mais profunda, mais concreta e certeira. Assim descobri o que estava errado. Tudo estava incorreto, ou pelo menos tudo em que eu notava. Centímetro por centímetro, o demônio a minha frente estava se mostrando e sua aparência não conseguia escondê-lo como antes conseguia.
Eu conseguia ver agora, circulando em suas veias, um líquido grosso, escuro e muito provavelmente, fétido. Eu estava pasmo com a descoberta. De certa forma, o monstro criado se tornava cada vez maior! Não de tamanho, mas de profundidade. Eu enxergava seus olhos negros e via um precipício. Um precipício de dor.
O que acontecia é que a velha falava em dor, respirava a dor e seus passos deixavam pegadas negras, fétidas e dolorosas. Olhar para ela provocava dor. Cheirá-la provocava dor. Falar com a velha provocava dor. Até quando dormia, nuvens grossas pairavam sobre sua cabeça. A dor tomou posse da velha.
Contudo, uma parte dela queria resistir. Ela ainda queria viver, pois procurava terapias, remédios e todo o tipo de ajuda. A bengala logo foi ser uma de suas companheiras que, de certa forma, ajudavam no processo bioquímico-doloroso da velha. E assim a velha passava sua nova vida.
Porém, só notei muito depois o quanto a situação estava crítica: a velha fazia dos produtos de limpeza uma das metas para alcançar a salvação. Limpava, limpava e limpava a casa, em busca de deixá-la impecável, para que todas as pessoas que a vissem elogiassem seu trabalho, liberando pequenas quantidades de prazer e deleite em seu mundo dolorido. A velha tentava limpar, por fora, o que estava sujo por dentro. Era triste de ver.
Nessa hora lembrei de duas outras velhas amigas de minha velha: uma vivia com o pano, a outra só falava de dor. E então reconheci o problema, mas não encontrei a solução para a anomalia da “limpeza dolorosa”. E neste instante a lembrança dos dias bons veio em minha memória. Lembrava, naquele exato momento, o quanto falávamos das outras duas velhas e o quanto eram esquisitas. E minha velha se tornou uma mistura das duas. E assim, a casa se destacava em contato com a aparência deplorável de minha velha. Foi uma das piores visões de minha vida.
E foi nesse instante que reconheci meu erro: não adianta tentar trazer a vida para quem está morto. Ela viveu até onde ela se permitiu viver e não cabia a minha pessoa trazê-la de volta à luz da vida. E então, a velha voltou a morrer, abandonando toda a dor que estava com o total controle de seu velho ser. A casa escureceu-se com a dor, infectando tudo o que a velha tentara deixar limpo. A dor tentou infectar a mim, mas já era tarde para a mesma. A dor não pode infectar um coração preenchido pela revolta.
Acendi o gás e a casa explodiu. A paz voltou a reinar novamente e com ela a felicidade que, embora mais fraca pela saudade da velha, ainda brilhava forte, enfeitando a minha vida que estava clara, tanto por dentro quanto por fora.

Lucas de Figueiredo

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