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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memória Escrita II

Constantinopla, ano 342.

Eu pensava que monstros não existiam, mas estava enganado. O que via a minha frente não era a prova disso. Pessoas jogadas aos trapos, morrendo de fome, sangrando... tudo naquele cubículo. Era triste de ver, mas eu não possuía o poder para fazer algo naquele momento. Melhor eu sair daqui antes que os guardas de papai me encontrem.
O jardim está bem florido nesta primavera. As borboletas passeiam pelas mais lindas flores que eu já vi. Mais ao longe dá para notar uma grande árvore. Perece que lá é um bom lugar para descansar. Ao aproximar-me, começo a enxergar um corpo e quando chego mais próximo ainda, vejo que é uma menina. Uma bela garota que parece ter uns doze anos de idade. Ela olha para mim e sorri, mas logo seu sorriso desaparece. Um homem gigante aparece atrás dela. É Aston, o ferreiro. Eu pensava que ele era um cara legal, mas novamente estava enganado. E assim, outra prova que monstros existem estava na minha frente. Ele agarra a garota e vai para sua casa. Minha curiosidade me faz segui-lo e lá, vi coisas que jamais imaginei.
O homenzarrão tomava a menina com força. Machucava em busca de algum sentimento bom. Ela fechava os olhos e pedia para que acabasse logo, enquanto o homem tocava em suas pernas limpas com suas sujas mãos. Eu assisti a tudo aquilo, não por vontade, mas por pena. E novamente eu não podia fazer nada.
Depois de dez minutos, o homem dormia com um sorriso macabro e a garota se vestia chorando em tom quase inaudível. Eu adentrei a casa e meus olhos fitaram os olhos espantados dela. Ela procurava se afastar lentamente de minha pessoa e eu compreendia suas razões. Neste instante a coragem me tomou. Não sei como eu fiz isso, mas quando dei por mim, a espada ainda inacabada e incandescente adentrava na barriga gelatinosa do ferreiro. A menina me olhava com mais espanto, mas agora se aproximava de mim. Eu dei um sorriso singelo e a trouxe para casa.

§§§

Ao chegar em casa, levei-a para meu quarto sem os outros perceberem. Lá ela me contou sua história. Contou sobre seus pais assassinados e sobre a gentil e maliciosa atitude do ferreiro em adotá-la. Ela não poderia descumprir as ordens de seu novo pai – se é que poderia chamar aquilo de pai - ou seria deixada ao vento, como um simples objeto. Eu entendi a situação e pedi para a empregada um lanche, fingindo ser para mim. A empregada nem notara a menina, já que a mesma estava bem escondida embaixo de minha cama.
Quando me sentei à mesa para o jantar, meu pai comentava da misteriosa morte do ferreiro e do sumiço de sua filha. Eu procurei ficar o mais silencioso possível, mas papai me envolveu na conversa. Resolvi falar que estava com a menina e que gostaria que ela morasse na casa. Meu pai ficou bravo por um instante, mas talvez pelo fato de sua mente ser tão parecida com a do ferreiro, ele aprovou meu pedido. De sua mente ele procurava entender a minha e enxergava intenções que não existiam. Em sua face estava claramente escrito: “Meu filho está virando homem!”.
Eu sorria por dentro, pois havia conseguido o que queria. De agora em diante só tinha de protegê-la de papai, tarefa que não era tão difícil, pois sabia os lugares que ele freqüentava. Bastava não levar a garota a eles.
E eu pensava que os monstros não existiam, mas o mundo revelou-se para mim. Eu era apenas um garoto de dez anos diante de um mundo monstruoso. Cabia a mim escolher ser um deles ou não.

Fernando Ribeiro Hamiskzy

Lucas de Figueiredo

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