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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Cartas ao deserto, entre febres e delírios

Retorno após grande jornada. E não trago souvenires na mala. Quero apenas rever quem gosto, e agora incluo à lista eu mesmo. O momento é nebuloso e confuso, mas preciso estar de pé pra recebê-la em meus braços e dar-lhe os fortes abraços que dava antes que chegasse a noite.
Perdi a noção dos dias, do que faço e vejo. Já não sei exatamente o que é sentir-se bem. Talvez seja ter a cabeça leve... Ou o contrário? Pois a mente ocupada é a que vive mais?
Vão me ver e não me reconhecerão. Pensarão que estou louco... Pode ser que sim. Não me lembro a causa de minha enfermidade. Porém tudo o que importa é revê-la, e dar-te o meu coração é minha obsessão.
Ah, mas como ela vai me entender, como vai me conhecer se as portas do meu velho guarda-roupa, cheias de figurinhas com todas as épocas, estão fechadas para mim? Não o tenho mais, é fato. Lá se foram com ele edredons das horas que não esqueço: ouvia histórias sobre aberrações sem saber que se tornaria uma, deitada e delirante assim como eu ficava naquele instante sadio, em que me ria com os desfechos trágicos. Preciso manter a lucidez enquanto for possível. Em breve rirei de minha própria história e seu fim.
Até porque jamais me compreenderão se eu continuar a escrever pela metade, se deixo o passado por mais que sinta saudade (estou rimando em prosa, já estou gagá de fato!). Como saberá quem sou se minha essência, ao se esvair, não deixa o que restou?
Amor, aquela navalha que eu tinha ficou cega. Ela corta, mas não raspa, entende? Cortou até meus velhos medos superados. Por pior que fossem, ajudavam-me a viver.
Plantarei uma árvore lá no hipotálamo. Mesmo que um eu perdido a arranque, baseando-se no pavor que tenho de tudo e todos - sobretudo do termômetro e seu resultado fervoroso - os outros saberão que a semente dela veio do fruto, ou seja, aquilo que fui um dia. O passado é minha estória, história, recordação e fantasia, quem fui e deveria ser agora. Foi embora. Estou indo embora.
Teremos uma casa com varanda e uma menininha de vermelho, como você sempre sonhou. Até porque o vermelho é a vida escorrendo de meus dedos. Em breve começo o trabalho, depois que me amputarem as pernas. Entregarei cartas em breve e espero (quem sabe?) receber notícias minhas de mim mesmo. Nossa filha vai conhecer o padre que me dá a extrema-unção, vou apresentá-lo pessoal-mente. Sei que é um pouco confuso, mas mamãe telefonou do céu e disse que é só dor de ouvido, não se preocupe. Ela só precisa de doses de informações (eu tenho tantas do velho trabalho!) que não estejam censuradas, assim como o Egito , aquele país bonito ao lado de Pasárgada, também precisa porque está doentinho.
Egito, oh Egito, precisamos desvendar o mistério de nossas pirâmides!
(...)

Convulsão e morte.
Rio, 26 de Janeiro de 2011

Rafael Cardoso

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